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Publicações - Quatro Rodas nº 325 de agosto de 1987
Andamos com o Cena: Aprovado
(páginas: de 34 a 39)


Andamos com o Cena: Aprovado

De surpresa em surpresa, nosso editor executivo teve uma impressão favorável do Cena, primeiro carro todo brasileiro. Siga seu relato.


Esta é a primeira aventura do Cena fora do ninho. É a primeira vez que ele deixa os limites da fábrica, em Rio Claro, SP, e comigo ao volante pega a rodovia Washington Luís e acelera tudo, até o fim. Com um torque surpreendente, ele sobe rapidamente de giro e logo atinge sua velocidade máxima. Nem parece ter apenas dois cilindros e 800 cm3 de cilindrada - meio motor VW. como dizem alguns.

280-M e Santana
Quase um capô menor que o Santana.

Ainda protótipo, o velocímetro não funciona corretamente. Marca menos do que o real. Faço sinal para o motorista do carro de apoio, que me segue logo atrás, com o velocímetro aferido, para que assinale a velocidade real do Cena neste instante. A informação logo vem, através de gestos, confirmada posteriormente: o Cena faz cerca de 110 km/h na estrada, no plano. Nada mau, para um carro projetado para uso urbano.


Da emoção de uma curva perfeita à maciez por caminhos ruins: surpresas da suspensão Gurgel.

Reduzo rapidamente as marchas, o câmbio aceita sem protesto: nenhuma arranhada. E entro então no trevo de acesso a Rio Claro, uma curva de quase 90° para a direita, a uns 70 km/h. "Não vai dar", penso. e lembro que, na pressa de montar o protótipo para esse primeiro passeio, alguém esqueceu de colocar os cintos de segurança. Tento me agarrar como posso ao volante e ao banco. Afinal, ainda não consigo confiar na estranha suspensão, principalmente a dianteira, projetada pelo sr. Gurgel.

No meio da curva, a surpresa: a estabilidade do carrinho é incrível. Lembra muito a dos Fiat em curvas de baixa velocidade, muito neutra, e nem mesmo os pneus chegam a cantar. A descoberta dessa boa estabilidade cria imediatamente uma suspeita: será que o carro não é muito duro em chão esburacado?

É o momento de tirar isso a limpo. nas ruas de Rio Claro. Para isso acelero forte, "caçando" deliberadamente os buracos, e tenho uma nova surpresa: ele passa macio pelos buracos, sem dar qualquer impressão de que vai se desintegrar. Além disso a suspensão do Cena tem a vantagem de ser regulável, ou seja, pode ser acertada de acordo com as necessidades de uso. Uma porca comprime a mola da suspensão, deixando o carro mais alto ou mais baixo, mais mole ou mais duro. Assim, embora não tenha sido projetado exatamente para isso, o Cena poderá também enfrentar estradas de terra, bastando para isso levantar sua suspensao.

Feito para ser ágil na cidade. E é.

Rodando agora dentro de Rio Claro, procuro observar a reação das pessoas à passagem do Cena e fico desapontado. E que os habitantes de Rio Claro já estão acostumados as invenções do sr. Gurgel, como o Xef, o Xavante, o ltaipu e o Carajás - e o Cena não deixa de ter essa herança genética, o estilo Gurgel. Certamente chamará a atenção em outros lugares. É feio? Não. Apenas estranho. Logo, porém, poderá estar fazendo parte de nossa paisagem urbana.

No meio do trânsito, ele é rápido. Ficará ainda mais quando receber o novo diferencial, mais curto. O carburador definitivo também não foi escolhido. Deverá ser um que, sem prejuízo da agilidade, seja capaz de fazer do Cena um carro reconhecidamente econômico.

Faço uma baliza, é extremamente fácil. O carro tem quase 40 cm menos do que o Uno, que é o menor dos carros nacionais de série. Sou obrigado a descer do carro para acreditar que ainda falta quase meio metro para bater no carro de trás.

280-M
Facílimo de estacionar, rápido no trânsito: o Cena agradou.

Interior do 280-M
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Interior de carro urbano: racional e sem luxo.
Dentro, nenhum luxo, mas muita racionalidade, como exige um carro urbano. Os bancos são estreitos, para aproveitar melhor o espaço, mas o tecido, uma espécie de tweed, é de boa qualidade. A posição do motorista é levemente inclinada para trás, quase como num esportivo. A alavanca de câmbio também é inclinada para trás. Os pedais ficam bem próximos entre si, como num Fusca. E o painel contém apenas o básico: velocímetro, marcador de nível de combustível e luzes-testemunhas de bateria, setas, pisca-alerta e temperatura do óleo. No centro, o rádio, tendo ao lado um porta-luvas sem tampa.

A visibilidade para a frente e para os lados é muito boa. Para trás fica bem prejudicada pela largura das colunas traseiras. E um detalhe importante a ser revisto, pois essas colunas podem esconder um poste ou uma criança na hora de uma manobra.

Traseira do 280-M
Na traseira, o estilo Gurgel. Mas as colunas atrapalham a visão

Barulho que lembra maquina de costura.

O escapamento também é provísorio, daí o nível de ruído elevado. O escapamento definitivo ainda não está pronto. De qualquer forma, o ruído não se parece com o do Fusca, lembra mais o de uma máquina de costura funcionando a toda velocidade. Conseguirá a fábrica torná-lo um carro silencioso? Isso será sem dúvida importante para o seu sucesso comercial.

Estepe
Estepe poderá ficar mais fino
No final do teste faço uma sugestão ao sr. Gurgel. Por que não adotar no Cena um estepe mais fino, semelhante ao utilizado no Voyage Fox, exportado para os Estados Unidos? Esse estepe ocuparia menos espaço no porta-malas. Talvez pudesse até ser instalado na frente, no compartimento do motor. E. além disso, iria colaborar para uma redução do custo do carro. O sr. Gurgel gosta da idéia e promete falar com a Volkswagen para tentar obter esse estepe, que, por coincidência, tem a mesma medida (aro 13) e a mesma disposição de parafusos que as da roda do Cena, servindo perfeitamente.
Luiz Bartolomais Júnior

Como carro, uma inovação

Com o Cena, Gurgel criou não só o primeiro carro nacional, mas um novo conceito de carro

Se São Bernardo do Campo pode ser considerada a capital brasileira do automóvel, Rio Claro, cidade do interior de São Paulo, pode passar a ser, de agora em diante, a capital do automóvel brasileiro. Lá, por iniciativa do arrojado João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, está sendo produzido o primeiro carro com tecnologia 100% nacional: o Cena (ou "carro econômico nacional").

Este projeto pioneiro, que até o momento já consumiu 5 milhões de dólares em investimentos, nasceu da necessidade de se produzir no país um veículo barato, econômico e de tecnologia própria - e, ao que tudo indica, o Cena deverá cumprir seus objetivos básicos.

- Quando eu pensei no Cena pela primeira vez, imaginei que ele deveria introduzir um novo conceito tecnológico, pois só assim conseguiria chegar ao sucesso. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o Ford T, ou o Volkswagen (Fusca). Por isso, demos prioridade aos aspectos tecnológicos do carro - explica o engenheiro Gurgel, presidente da Gurgel S.A.

E o que há de inovador no Cena?

O próprio Gurgel enfatiza que, a começar pelo chassi, muitas soluções criativas foram aos poucos viabilizadas. Pesando apenas 42 quilos, o chassi é do tipo envolvente, de construção tubular (com seção quadrada), proporcionando boa segurança aos passageiros. Ele é dividido em duas metades (interior e superior) e forma uma espécie de sanduíche com a carroceria, garantindo correta fixaçao ao sistema.

A suspensão dianteira tem altura regulável e introduz um interessante conceito, que elimina os amortecedores. Eles foram substituidos por dois discos de fricção (com pressão também regulável), que agem como amortecedores. Os braços têm geometria variável e proporcionam amortecimento progressivo. O sistema foi inspirado nas suspensões de motocicleta do tipo monochoque. As molas helicoidais foram mantidas. O desgaste dos discos, segundo Gurgel, deverá se equivaler ao do disco de uma embreagem comum.

Suspensão dianteira do 280-M
Suspensão dianteira: regulável.
A suspensão dianteira tem altura regulável e introduz um interessante conceito, que elimina os amortecedores. Eles foram substituidos por dois discos de fricção (com pressão também regulável), que agem corno amortecedores. Os braços têm geometria variável e proporcionam amortecimento progressivo. O sistema foi inspirado nas suspensões de motocicleta do tipo monochoque. As molas helicoidais foram mantidas. O desgaste dos discos, segundo Gurgel, deverá se equivaler ao do disco de uma embreagem comum.

Também de inspiração motociclística (com certeza nos motores BMW), o motor do Cena foi alvo dos maiores cuidados do pessoal da Gurgel Tec (empresa do grupo responsável pelo desenvolvimento técnico do projeto). Ele é um dois-cilindros, com cilindros horizontais contrapostos, refrigerado a água, onde se eliminaram as correias do alternador e distribuidor. Na verdade, nem distribuidor o motor tem. O avanço da ignição é controlado por um processador digital baseado em dois sensores que medem as rotações do motor e o vácuo do carburador. O sistema tem a vantagem de proporcionar uma melhor queima da mistura, inclusive porque sao emitidas duas faíscas por ciclo (para queima total dos gases de exaustão), o que resulta também em menos poluição ambiental. A bobina é dupla, alimentando cada cilindro de forma independente.

A refrigeração é a água, através de bomba dupla auxiliada por uma ventoinha elétrica e por um sistema de troca de calor no coletor de admissão. O bloco, fundido em liga de alumínio e silício, pesa apenas 7,8 quilos.

O motor Gurgel que equipará o Cena será produzido em duas versões: o modelo 265, de 650 cm3, 26 cv e torque máximo de 4,7 mkgf; e o 280, de 800 cm³, 32 cv e 5,7 mkgf - sempre a gasolina. A expectativa de consumo é de 20 a 30 quilômetros por litro, para um veículo com peso total aproximado de 450 quilos. Ao eixo do girabrequim está acoplado o alternador, num sistema de tração direta sem correia).

Motor do 280-M
Dois cilindros, 650 ou 800 cm3, refrigerado a água: o motor Gurgel.

Amortecedores, só na traseira.

Suspensão traseira do 280-M
Na traseira, feixe de molas - mas também há amortecedor.

A tração, traseira, se processa por um diferencial de eixo rígido, com suspensão através de feixe de molas de duplo estágio (para carga leve e lotação total) e amortecedores. Apenas na suspensão dianteira é que os amortecedores foram substituidos por discos. O câmbio é de quatro marchas para frente e ré, e terá inicialmente uma versão de engate rápido (como em motos). Haverá, depois, a opção de câmbio com marchas sincronizadas.

Câmbio do 280-M
Câmbio de quatro marchas à frente e um cardã.

O sistema de freios não apresenta novidades. Eles são a disco na parte dianteira e a tambor atrás. Seu desenvolvimento e aperfeiçoamento foi realizado com auxílio de computador para adequado dimensionamento.

As linhas do Cena têm a marca registrada dos veículos Gurgel: formas retas com a traseira truncada e achatada. Numa primeira impressão o pequeno carro (60 cm mais curto que o Fiat 147) lembra uma míni-Brasília. A diferença principal, no entanto, está no capô. O do Cena é bem curto e tem perfil aerodinâmico.

Aliás, a aerodinâmica foi um dos itens levados em conta no projeto global do carro produzido em Rio Claro. A tentativa foi a de se criar a menor área frontal possível e evitar os fluxos laterais de ar - ou seja, as correntes de ar atravessam o capô e se estendem pela capota sem criar perturbações nas lateriais do automóvel, melhorando assim sua penetração aerodinâmica.

Preço: de 2.500 a 3.000 dólares.

O lançamento oficial do carro deverá ocorrer no dia 7 de setembro em Brasília. Distrito Federal, quando das comemorações da Independência, uma vez que o projeto teve auxílio e suporte financeiro do Ministério da Ciência e Tecnologia, através da FINEPE - Financiadora de Estudos e Projetos.

Para a viabilização do Cena a Gurgel construiu uma nova unidade industrial com 3.500 metros quadrados, onde foram instalados o CGU - Centro Geral de Usinagem e a Gurgel Tec. Além disso, um novo prédio, com área construída de 5.000 metros quadrados, está em fase final de execução para abrigar a linha de montagem dos veículos da família Gurgel (incluindo-se aí o Cena). Espera-se uma produção inicial de 200 modelos por mês.

Com capacidade para o transporte de quatro passageiros ou carga máxima da ordem de 400 quilos, o Cena será oferecido em quatro versões: 265 S (Sedan com motor de 650 cm3) e os 280 (motor de 800 cm3), M (Multiplo), F (Furgão) e C (Caribe). A transformação dos modelos pode ser feita rapidamente, pois os módulos são fabricados em fibra de vidro, em painéis de fácil instalação. O preço estimado do carro, em sua versao mais simples, é de 2.500 a 3.000 dólares - dependendo das negociações da empresa junto aos órgáos federais no sentido de uma redução do IPI.

João Pedro Bara

Interessados devem esperar

"Comercializar o carro não vai ser problema. O que nós já estamos recebendo de telefonemas de pessoas interessadas, de todos os cantos do Brasil, supera qualquer espectativa".

As palavras são do próprio Gurgel e dão mostras do otimismo que ronda o projeto Cena - antes mesmo do seu lançamento oficial e muito antes da fixação da data oficial de sua comercialização (na verdade, ainda indefinida).

De concreto sabe-se que serão produzidas inicialmente cinquenta unidades, destinadas a empresas estatais com sede em Brasília. Estes primeiros modelos serão permanente acompanhados por técnicos da fábrica para sua completa avaliação. Só depois será possível a fabricaçao em série - e, conseqüentemente, as vendas ao público.

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Gurgel: empenho na criação do carro que não paga royalties

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