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Publicações - Quatro Rodas nº 302 de setembro de 1985 O futuro chega antes à GurgelO pioneiro latino-americano do carro elétrico apresenta suas novas loucuras: a superbateria, dez minicarros de um cilindro e três modelos de dois cilindros, com tecnologia da Citroën francesa. REPORTAGEM DE RENATO MODERNELL
Anos atrás, numa viagem ao Panamá, o engenheiro e empresário - ou "um misto de industrial, projetista e inventor", como ele próprio se define - João Conrado do Amaral Gurgel ficou conhecendo um outro tipo humano bastante incomum: o ministro do Futuro do Japão. Exatamente isso: um ministro do futuro, ou seja, um homem encarregado de pensar nas alternativas econômicas e energéticas para o seu país nos próximos séculos. Ele estava lá por uma razão bastante óbvia: em função da capacidade do canal do Panamá, fundamental para a navegação mundial, o Japão dimensionaria seus navios para o ano 2000. Numa conversa informal, Gurgel perguntou a ele: "Ministro, como vai o Japão?" E o ministro: "Não sei. O meu Japão vai do ano 2000 ao ano 2300. Ainda não começou". Nada como um ministro japonês para dar uma resposta dessas. E nada como João Gurgel para jamais esquecer essa resposta. Aos 59 anos, esse homem espantosamente lúcido, falante, às vezes saborosamente visionário, mas indiscutivelmente obstinado e pioneiro (entre tantas coisas, é o primeiro fabricante do carro elétrico neste continente), cuja visão do mundo e das coisas não raro tem rasgos de genialidade, continua um crítico atento aos rumos do país. Para ele, guardadas as proporções, se o Brasil não pode se dar ao luxo de ter um ministro do futuro como o Japão, precisava pelo menos de algumas cabeças não contaminadas pelo imediatismo, pensando aonde vamos chegar depois de amanhã. Do contrário, podemos chegar a lugar nenhum. "Quando você traça o futuro e sabe aonde quer chegar, é muito mais fácil achar as soluções hoje", afirma Gurgel. Típico, clássico exemplo do imediatismo brasileiro, segundo ele: o novo aeroporto internacional de São Paulo, em Guarulhos, que gerou tanta polêmica quanto ao custo e à localização. E que pode até brevemente ser uma coisa obsoleta: "Se soubessem dos novos projetos de avião a hélice que há no mundo, muito mais silenciosos, econômicos e eficientes que os jatos, precisando inclusive de pistas bem menores, eles não teriam construído esse aeroporto. Acontece que aqui no Brasil ninguém está preocupado em olhar um pouco mais à frente. Queremos apenas enxergar a luz no fim do túnel, mas só isso não basta, o mais importante é saber para que lado o trem está indo, se para baixo ou para cima, e qual é a próxima estação. Vamos supor que a gente saia do túnel. E daí?"
Ao entrar no seu próprio território, o dos automóveis e combustíveis, Gurgel toma-se ainda mais convicto e veemente. "Quando eu proponho a queda do preço da gasolina pela metade, evidentemente desaconselho o próprio carro elétrico, que é a nossa bandeira, sem dúvida o veículo urbano do ano 2000. Ocorre que não adianta fabricar carro elétrico num país inviável. Nesse caso, não estou pensando apenas como empresário, mas no Brasil como um todo. Se o Proálcool não for revisto, o Brasil não é viável, não sai do buraco. Estudo esse assunto desde 1980, e aquilo que eu escrevi em artigos de revistas naquela época está acontecendo agora, isto é, estamos indo à falência. O Proálcool é um prédio com três ou quatro andares que está trincado. E uma irresponsabilidade ficar botando mais andares em cima. Senão, quando ruir, vai ser uma desgraça ainda maior. Mas o engenheiro Gurgel dirige sua artilharia contra o álcool não só porque estuda o assunto há mais de cinco anos, mas também porque dificilmente poderia esquecê-lo. Ironicamente, sua fábrica de automóveis em Rio Claro, Estado de São Paulo, está completamente cercada de extensos canaviais que se perdem de vista. Ele puxa a cortina do escritório e olha para fora: "Veja, São Paulo agora se transformou num mar de cana. Estão desviando comida do homem para alimentar o automóvel. Tudo isso aí antes eram sítios que plantavam feijão com altíssima produtividade, a terra é excelente. O que é necessário é que as áreas que produziam comida voltem a produzir comida. Se continuarmos nesse caminho, dentro de algumas décadas, para alimentar a frota nacional a álcool vamos precisar plantar cana numa área equivalente à da Alemanha." E a reforma agrária, engenheiro Gurgel, como lhe parece? "Antes dela, temos é que brecar a anti-reforma agrária, que é o álcool. Mas, de qualquer forma, ela deveria ser feita não à base de desapropriações, mas de uma legislação fiscal que impusesse impostos tão altos às terras ociosas que o proprietário fosse obrigado a vendê-las, a um preço compatível, a quem se dispusesse a cultivá-las, beneficiado por taxas bem favoráveis. Aliás, acho que devia haver pesados impostos também sobre terrenos urbanos ociosos. Num país pobre como o nosso, isso é um absurdo. Gastam-se fortunas para levar infra-estrutura urbana a novos loteamentos distantes, enquanto no centro das cidades há terrenos baldios com asfalto, luz, telefone e carteiro passando em frente. É um luxo para o Brasil." Novos Tempos Para Gurgel, um inventor não só de carros como também de palavras, todos esses descalabros que colocaram o país nesse longo túnel são o resultado da atuação de duas figuras humanas da mais alta relevância nestas terras tropicais: os inocos (incompetentes ou corruptos) e os mecos (incompetentes e corruptos). "Por isso a nossa máquina, o Brasil, está improdutiva e ineficiente. No governo autoritário de antes, na ditadura econômica do general Figueiredo, eu não tinha diálogo com o ministro Camilo Penna, da Indústria e do Comércio. E verdade que hoje não mudamos totalmente de hábitos, não se pode mudar tudo de repente, mas assim mesmo já há mais espaço para a discussão. Os assuntos devem ser abertamente debatidos na televisão. Está na hora de questionar os ministros e as medidas do governo. Discutir, por exemplo, a legalidade do Conselho Interministerial de Preços (CIP), que poderia até mesmo quebrar a minha empresa. Desde janeiro que a Gurgel não segue mais o CIP, pois o considero ilegal."
Atualizando o preço de seus veículos com base em ORTN , a partir de julho a Gurgel adotou também esse padrão para o reajuste salarial de seus 330 funcionários - uma medida até então inédita no Brasil. Ao mesmo tempo, passou-os todos a mensalistas, eliminando assim uma incômoda discriminação em relação aos horistas. "A passagem para ORTN vai custar de 8 a 10% a mais por mês para a empresa, mas eu tenho certeza de que com isso a nossa produtividade também vai aumentar", afirma Gurgel. "Além disso, vamos também propor um pacto social aos funcionários. No caso de uma convulsão externa, como um impasse com o Fundo Monetário Internacional ou uma recessão de mercado, por exemplo, em vez de dispensar funcionários a empresa reduziria a jornada de trabalho. Numa fase muito difícil, a Gurgel faria parte do pagamento em ações, com o compromisso de recomprá-las mais tarde." Foi a abertura do capital, em dezembro do ano passado, aliás, que permitiu à empresa expandir-se e abrir espaço para velhos projetos de Gurgel que agora começam a ser postos em prática. O mais importante deles é uma linha de veículos populares provisoriamente batizada de "Bastião", cujo programa, em princípio, custaria algo em torno de 80 milhões de dólares. Seriam dez carros de um cilindro (400 cc), motor a quatro tempos, 16 HP, velocidade máxima de 80 km/h, destinados essencialmente ao tráfego urbano, cujos protótipos deverão estar prontos perto do fim do ano. O menor desses carros, para quatro pessoas, terá cerca de 3 m de comprimento e 1,8 m de distância entre eixos - o Fiat 147, o menor do mercado brasileiro, mede 3,62 m de comprimento, e a distância entre seus eixos é de 2,22 m -, utilizando um motor totalmente fabricado pela Gurgel com um sistema de balanceamento pendular que lhe permite trabalhar praticamente sem vibrações. Custará 250 ORTN - em agosto, pouco mais de 12 milhões de cruzeiros, 40% menos que o carro nacional mais barato, o Fusca. "A idéia de fazer esse carro é de 1949", revela Gurgel. "Antes, como a gasolina era barata, o momento não era tão propício como hoje. Mas, na verdade, eu sempre achei que havia um lugar para ele." O grande sonho de Gurgel - fabricar veículos de carga e de passeio em larga escala no Brasil, a preços populares - completa-se com uma outra família de veículos, além do Bastião, a serem produzidos em colaboração com a Citroën francesa, pertencente ao poderoso grupo Peugeot, que ele considera a fábrica tecnologicamente mais avançada do mundo. Serão três carros - um de passageiros, um furgão e uma picape - com motores de dois cilindros (600 cc), a álcool e a gasolina. O primeiro acordo para fornecimento de tecnologia da Citroën foi estabelecido no meio do ano e nos próximos meses, possivelmente, será assinado o contrato definitivo. A fabricação desses veículos populares começará dentro de mais ou menos dois anos, com mil unidades mensais no início e 5 mil dentro de cinco anos, quando, em vários pontos do país, estiverem instaladas as linhas de montagem que utilizarão os kits enviados pela fábrica-base.
Paralelamente a essa ofensiva no terreno dos carros de um e dois cilindros, projeto para o qual durante tantos anos Gurgel se ressentiu de uma total falta de apoio ("Automóvel não se constrói, se compra. Põe isso na cabeça." Esse foi o conselho de um de seus professores na Escola Politécnica de São Paulo, em 1949, quando ele pela primeira vez pôs a idéia no papel), um outro projeto que já lhe valeu o rótulo de lunático pode ganhar agora um novo impulso: o carro elétrico. Há algum tempo, esse carro empacava num problema fundamental, a bateria. E movido por um gigantesco e caro (500 ORTN ou Cr$ 24,7 milhões, em agosto) conjunto de seis baterias, que levam oito horas para ser recarregadas e têm vida útil de apenas dois anos. Isso quase o inviabilizava como um veículo acessível ao cidadão comum.
Agora, o quadro começa a mudar. Ainda este ano, a Gurgel passará da fase experimental para a produção comercial uma bateria circular patenteada há três anos e que oferece inúmeras vantagens em relação à atual. Além de uma certa redução de peso e volume, terá uma vida útil quatro a cinco vezes maior, custará a metade do preço da atual e será recarregável em apenas 90 minutos. A manutenção também é mais simples, pois se pode trocar um elemento com defeito. Como seu formato é circular e sua colocação é transversal ao sentido do carro, o próprio arranque facilita a circulação do ácido e a refrigeração e homogeneização da solução. E essa nova bateria pode ser carregada com alta amperagem sem risco de ficar danificada. Se essa bateria de fato render o que Gurgel espera dela, certamente vai abrir os horizontes para esse carro elétrico, que, no fim das contas, é um dos mais genuínos produtos da teimosia desse homem que, por acaso, costuma sempre enxergar um pouco à frente de seu tempo. E que pensa menos no túnel do que na direção do trem. E que garante que jamais sairemos do buraco parando de plantar feijão para produzir álcool. E que insiste a cada momento em que é vital, urgente, pensar no futuro. Estaria aí, nesse engenheiro grisalho tantas vezes chamado de louco, um futuro ministro do Futuro do Brasil? E se alguém o convidasse? "Acho apenas que esse Ministério do Futuro deveria ficar a cargo de uma pessoa que não quisesse nem precisasse de um tostão do governo. Assim, não haveria esse grande perigo da corrupção e do imediatismo. O ministro japonês, aliás, pensando coisas para daqui a duzentos ou trezentos anos, nem tem como ver o resultado de seu trabalho, pois não estará vivo até lá." Mas e se alguém o convidasse? "Não, eu gostaria apenas de colaborar, dar algumas idéias. Meu lugar é aqui na fábrica." Fábrica que não deixa de ser uma pequena usina do futuro. Algumas modestas loucuras estão sempre surgindo lá dentro. |